Arena mal assombrada

abr-1st-2013

TRIBUNA LIVRE

Credo. Acontece de tudo nessa Arena. O lugar é mal assombrado. O Grêmio, em homenagem ao aniversário da cidade, participou de um evento festivo da semana intitulado “recordar é viver”. Conseguiu, inacreditavelmente, jogar um GRE-CRUZ ! E, mais inacreditavelmente ainda,  perder !!!

O clássico citadino dos tempos do Ghilosso, do Grande Hotel e do Bromberg, redivivo.  Há muito não ouvia falar do  alvi-azul, clube do Hoffmeister, dos Bittencourt, dos Di Primio Becker, dos Brenol de Andrade, dos cemitérios lindeiros, do Laerte II e do Laerte III. Do Arizábalo. Do Barrilzinho de Pólvora, do Jarico. E até do Jair Soares. Tempos do pós guerra. Do Alto da Bronze.

A gente descia do bonde Teresópolis, ali, perto do Olímpico, nas tardes de sábado ( o Cruzeiro jogava na véspera dos jogos da dupla) e subia a Montanha. Contra o Nacional, o Renner, o São José, o Força e Luz (antes, Corintians). Depois, o Floriano e o Aimoré. Cheiros de charuto, pólvora seca  e terra molhada no ar. Meu pai ia de chapéu (tenho uma foto de um jogo na Chácara das Camélias,  onde o pavilhão inteiro estava ocupado por homens de  Ramenzoni, “O” chapéu (Seu Herminio vendia eles) .

Alguns de terno de linho branco. Que iam e vinham dos prélios em carros de aluguel, chamados de “Lotação”, carros grandes importados  ( Buicks, Oldsmobiles, Packards, Dodges , Mercurys , Nachs e etc.) com seis e até sete lugares. Radios tocando Gardel e Bing Crosby. Algumas transmissões da orquestra do maestro Salvador Campanela. Havia o Grande Hotel, o Majestick e a Mônica. Também  a Emilia e a Casa dos Barbantes. O Treviso. O Ildo Meneghetti e o Valter Jobim. E o Pio XII. “Estudantes que formamos, nossa alma varonil, somos lídima esperança, do futuro do Brasil “(se soubesse do Lula.., tinha estacionado  ali, na juventude).

Diziam que o Cruzeiro havia acabado. Que seus restos é que  estavam agora  sendo exumados nos subúrbios da cidade ou nas suas proximidades, no lugar  que a Bíblia chamou  de” terra do leite e mel”,  “a terra prometida”, com o nome de  Cachoeirinha. Pelo menos teria havido, antes,  exéquias completas do Cruzeiro que eu  recordava. Quando vi a cena do time entrando em campo, me belisquei. Acho que estava sonhando. Um bando de fantasmas de calção e vestidos de branco na noite profunda e silenciosa  de Humaitá, logo ali, depois de  escombros de incêndio,  em meio aos casebres e palafitas daquele excêntrico e excitante bairro da cidade atual.

Um pouco bêbados, não fosse os morcegos, bem se poderia comparar a Beverly Hills, depois do Napalm. Aquilo não  me pareceu um  jogo, mas um re-jogo. Ou o jogo que não teve fim. Antes do apito inicial, uma vista rápida na periferia do campo    deu-me um certo frio no espinha: havia um fosso papa-torcedor bem ali na frente. Tive a sensação de que se não me cuidasse, num momento de alienação ou abstração profunda,  seria tragado pelo buraco.

Quem sabe, na descida, pra tomar refri, se tropeçasse … (Certamente outro inquérito dos Bombeiros . Está na moda.  Qualquer coisa, chama os Bombeiros. Até pra resolver cárie dentária ou síncope cardíaca. Nada de Samu. Depois eles dão um laudo. Bem grande. Como o Tarso gosta. Os culpados sempre são os outros. E se não são, a gente inventa). Mais adiante, no fundo, uma imensa arquibancada abandonada, como a reverenciar antigas  torcidas desterradas e  tempos gloriosos do time , idos e vividos. (Aliás, a propósito, alguém, na crônica da vida do  Grêmio, um dia devia parodiar Machado de Assis, em “Versos a Carolina”, para retratar estes nossos tempos tristes e essa  desesperança).

Ocorreu-me : trata-se  de lugar apropriado para erguer-se permanentemente  ( ou pelo menos enquanto se consiga pagar  a Arena) um panteão  em homenagem ao “Torcedor Desconhecido”, transformando aquela inutilidade silente, diploma de incompetência,  numa reverencia aos que, anonimamente, tem recrudescido, em outro lugar e a cada derrota do Grêmio, o seu amor pelo clube. Senão seus corpos, pelo menos sua alma e coração poderiam ali ser ali inumados, assim, talvez, até  justificando o seu clima noir. Sua atmosfera de Hitchcock.

A cena e o ambiente estavam perfeitos para um filme de terror. Que realmente passou. Cenas tão singulares quanto apavorantes aconteceram depois, só explicáveis metafisicamente: houve um gol do time anilado, o ressuscitado E.C. Cruzeiro, onde, entre trapalhadas com cabeças, troncos e mãos, somente concebíveis se atribuídas a caprichos do  Capeta e acontecidas entre dois patetas numa noite estranha, o goleiro e o zagueiro do nosso time,  um duende extra terrestre  com cabelo de espanador de vidraças e nome de traveco, que casualmente  ia passando pelos arredores   naquele momento, olhando a lua e coçando o saco, encolheu a perna pra não se meter no rolo, com isso alcançando a bola, coitada, que, não sabendo pra onde ir, tomou o caminho do nosso gol, onde mansamente entrou, sem perturbações inconvenientes  e ante o silêncio e a perplexidade gerais.

Vade retro, Satanás. Enquanto isso, o adversário do Cruzeiro, também formado por fantasmas, mas tricoloridos, liderados por um Gladiador e um Pirata –  Luke Skywalker e Han Solo do momento – esforçava-se denodadamente para estourar a paciência de meia dúzia de assistentes e de milhares de telespectadores do espetáculo, travestidos de Dart Vaders. Todos integrantes de uma leva de ciganos da cidade, recém corridos de seu habitat de sempre,  que alguém,  elegante, mas espertamente,   em algum momento, há pouco, chamou de “migrantes”. Pra disfarçar o êxodo forçado. De consistente, nessa exótica expressão, somente o fato de que todos estão  migrando é  para a Sky, que, por isso,  agradece à OAS e ao Conselho do clube o incremento nas vendas. À falta, pois, de coisa melhor, o que de mais se pode exigir dessas hordas de transeuntes  apaixonados não é mais torcer, mas louvar. A Arena.

O envolvimento associativo do clube há muito subtraiu-se da competição desportiva, sua primitiva razão de ser,  em favor da evangelização de seu patrimônio e no culto a sua magnificência. E não aquele existente, o possível, mas apenas o sonhado, o  apenas provável.  Crê-se ou morre-se. Ontem, em véspera de sexta-feira santa, baixo a lua cheia, o lobisomem do Olímpico uivou nas suas frestas. Cuidado com os meteoritos. Drácula pode vir a bordo. Só faltava isso. Arena mal assombrada.

Cacaio Azambuja Sócio Patrimonial Remido Conselheiro do CD

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